SOCIEDADES SUSTENTÁVEIS: RUMO A UM NOVO ‘NÓS’

Statements

SOCIEDADES SUSTENTÁVEIS: RUMO A UM NOVO ‘NÓS’

Declaração da Comunidade Internacional Bahá’í para a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável

Rio de Janeiro, Brazil—20 June 2012

No momento em que as nações e a sociedade civil se reúnem na Conferência Rio+20 para dar o passo seguinte na formação de uma nova visão de desenvolvimento sustentável, o ímpeto gerado para iniciar a conferência já criou novos níveis de questionamento e colaboração. As preparações para o evento estimularam reflexões sobre paradigmas econômicos, modos de governança, indicadores de progresso, o papel da juventude, bem como sobre o próprio objetivo do desenvolvimento. As Nações Unidas abriram as portas para a participação da sociedade civil no processo da Conferência numa amplitude sem precedentes, mas muitas vozes ainda precisam ser ouvidas. Ainda assim, o que se observa hoje é um chamado que se ergue para que os governos aproveitem a oportunidade que se lhes apresenta para que demonstrem generosidade e determinação, que se abstenham do partidarismo e da autopropaganda e que articulem uma estrutura visionária e ambiciosa que permita o florescimento humano.

A estrutura econômica e institucional elaborada no Rio exigirá o reexame das relações que sustentam a sociedade: relações entre estados nacionais, dentro e entre comunidades, entre indivíduos e instituições sociais, entre os próprios indivíduos, e entre a humanidade e a natureza ao seu redor. O desenvolvimento sustentável assume uma relação entre a atual geração e a futura – uma relação definida não somente pela geografia, mas também pelo tempo. Uma exploração sincera dessas relações oferece a lente através da qual poderão ser avaliados os méritos e falhas de quaisquer arranjos institucionais propostos e, mais importante ainda, poderão nos ajudar a articular nossas aspirações para o futuro. Oferecemos as seguintes ideias como contribuição à conferência acerca desses temas.

Guardiania

Uma dimensão crítica do desenho e implementação das novas estruturas econômicas e institucionais é o senso de uma guardiania mundial – a ideia de que cada um de nós ingressa no mundo sob a guarda do todo e que, por sua vez, possui como legado um certo grau de responsabilidade para com o bem-estar da coletividade[1]. O princípio da guardiania questiona a eficácia das expressões atuais de soberania. Ele desafia a base ética das lealdades que não vão além do estado nacional. Embora o multilateralismo tenha fortalecido e expandido a cooperação entre estados nacionais, ele não foi capaz de eliminar os conflitos de poder que prevalecem nas relações entre esses estados. A mera colaboração entre atores auto-interessados num empreendimento multilateral não assegura resultados favoráveis para a comunidade de nações como um todo. Enquanto um grupo de nações entender seus interesses numa relação de oposição aos interesses das demais, o progresso alcançado pela humanidade será limitado e de curta duração.

O conceito de guardiania é igualmente aplicável a muitas outras áreas de interesse para a humanidade. Os direitos humanos, por exemplo, alcançam sua mais elevada expressão quando entendidos no contexto da guardiania: eles passam a prover uma estrutura de relações humanas por meio da qual todas as pessoas têm a oportunidade de realizar seu pleno potencial, e todos têm a preocupação de garantir essa mesma oportunidade para os demais. A mudança para modos sustentáveis de produção e consumo é mais uma expressão desse princípio: em poucas palavras, é preciso reconhecer que consumir mais do que a porção justa significa exaurir os recursos necessários ao sustento de outros.

O princípio da guardiania implica na necessidade de uma perspectiva intergeracional na qual o bem-estar das futuras gerações é levado em conta em todos os níveis decisórios. Propostas como a criação de Ouvidorias ou Altos Comissariados para Futuras Gerações são exemplos de atitudes que podem traduzir esse princípio em ação. Tais instituições seriam incumbidas de considerar tanto os interesses de longo prazo da juventude e das gerações futuras quanto os interesses econômicos e políticos imperativos e de curto prazo.

Eliminação dos Extremos de Riqueza e Pobreza

Hoje, mais de 80% da população mundial vive em países onde as diferenças de renda estão se ampliando. Embora medidas de erradicação da pobreza tenham melhorado os padrões de vida em algumas partes do mundo, a desigualdade continua amplamente difundida. Numerosos e diversificados déficits no bem-estar humano são endêmicos tanto em países pobres como ricos. Cerca de 800 milhões de adultos não sabem ler ou escrever, dois bilhões e meio de pessoas não têm acesso a saneamento básico, aproximadamente a metade das crianças do mundo vive na pobreza e quase um bilhão de pessoas não possui comida suficiente. No outro extremo, alguns milhares de indivíduos controlam cerca de seis por cento do Produto Bruto Mundial. Essas distorções indicam as falhas estruturais do sistema econômico e de suas instituições – falhas estas que precisam ser corrigidas.

Faz-se necessária uma análise cuidadosa da maneira como a concentração extrema de riqueza distorce as relações no âmbito nacional e entre nações. Tais extremos minam a vitalidade econômica, mutilam a participação nos processos decisórios e políticos, obstruem o fluxo de conhecimento e informação, isolam pessoas e comunidades, além de distorcer a percepção da capacidade humana. A geração e despendimento de riqueza por parte das nações deve possibilitar a prosperidade de todos os povos do mundo. As estruturas e sistemas que permitem que uns poucos possuam riqueza excessiva enquanto as massas permanecem empobrecidas precisam ser substituídos por sistemas que fomentem a geração de riqueza de modo a promover a justiça.

É preciso estimular uma reorientação fundamental de princípios e de arranjos institucionais relacionados à produção e ao consumo a fim de criar padrões sustentáveis de atividade econômica que sejam difundidas do âmbito local para o global, abrangendo áreas urbanas e rurais. Atenção especial deve ser conferida a iniciativas que incentivem a criação e distribuição de riqueza em regiões rurais, bem como a políticas que impeçam a marginalização de iniciativas de base pelas forças da globalização econômica. Algumas abordagens promissoras incluem o fortalecimento da capacidade local para a inovação tecnológica e a promoção do respeito ao conhecimento tradicional de comunidades ou culturas.

O progresso e o bem-estar de toda a humanidade exigem o desenvolvimento e implementação de modelos econômicos que reflitam o papel fundamental exercido pelos relacionamentos na vida humana. Os recursos hoje destinados a atividades e programas prejudiciais ao ambiente social e natural devem ser realocados para ações em prol da criação de sistemas que promovam a cooperação e reciprocidade.

Ainda há muito o que aprender acerca dos extremos de pobreza e riqueza. É preciso ouvir as vozes e as experiências vividas pelos indivíduos – inclusive os mais pobres. Muito além das variáveis econômicas, por exemplo, é preciso aprofundar o conhecimento acerca dos recursos sociais e espirituais nos quais as massas se apoiam para conduzir suas vidas. Nossa compreensão acerca da riqueza extrema também é incompleta. Devido à natureza cada vez mais globalizada da riqueza e seus extremos, grande parte dessa riqueza escapa ao controle e administração no nível nacional e não se reflete nas estatísticas governamentais. Quais as estruturas que permitem que esses extremos de riqueza possam seguir existindo? De que maneira os sistemas econômicos e políticos contribuem para a perpetuação desse tipo de distorção? Que tipos de identidades e qualidades são promovidas por sua existência constante? É preciso aprofundar e difundir o entendimento acerca das implicações resultantes das movimentações financeiras globais e da maneira como essa riqueza é utilizada a fim de que as ações dos governos e da comunidade internacional possam avançar de modo informado e construtivo.

Consulta

As questões ligadas à promoção de uma visão sustentável de desenvolvimento são altamente complexas. Desta maneira, parece muito improvável que tais questões possam ser resolvidas pela imposição de teorias simplistas e fórmulas reducionistas. O que precisamos é de um processo efetivo para explorar as questões e tomar decisões que promovam uma participação genuína, facilitem a ação coletiva e respondam à complexidade inerente aos esforços para criar sistemas e estruturas sustentáveis. Para tanto, oferecemos um modelo de ‘consulta’ – uma abordagem para a tomada de decisão coletiva baseada em princípios, praticada pela comunidade bahá’í em todo o mundo.

Obviamente, as considerações a seguir não se baseiam na crença de que uma mera mudança no modo de tomada de decisão coletiva possa, por si própria, erradicar a pobreza e promover a sustentabilidade. Entretanto, torna-se cada vez mais claro que as atuais estruturas de tomada de decisão - que excluem as massas dos povos do mundo, perpetuam o conflito, enfatizam demasiadamente os interesses de um número reduzido de indivíduos poderosos e, muitas vezes, são subservientes ao desejo de ascensão política - são inadequadas à tarefa de construir um mundo melhor no qual todos sejam capazes de prosperar.

Participação

A abordagem bahá’í de desenvolvimento baseia-se na convicção de que todas as pessoas têm não apenas o direito de se beneficiar de uma sociedade material e espiritualmente próspera, mas também a obrigação de participar de sua construção. Para que uma consulta possa ser efetiva, ela deve promover a participação dos indivíduos na definição do caminho que suas comunidades tomarão – seja por meio da análise de problemas específicos, da busca por um grau maior de compreensão acerca de determinada questão, da exploração de possíveis rumos de ação ou da tomada de decisões coletivas. É essencial que existam mecanismos que facilitem a genuína participação nos processos consultivos daqueles que são tradicionalmente excluídos, inclusive os mais pobres.

Uma Estrutura Unificadora

A fim de se garantir a sustentabilidade do progresso no cenário internacional, é preciso que esse progresso ocorra no âmbito de uma estrutura que favoreça um grau progressivo de unidade de visão e ação entre os participantes. Cada passo adiante – longe de representar um triunfo momentâneo de uma única pessoa ou facção num ambiente de competição – torna-se parte de um processo coletivo de aprendizagem por meio do qual as instituições internacionais, os estados e a sociedade civil possam avançar juntos em harmonia.

Numa estrutura como essa, as ideias e sugestões não pertencem a uma única pessoa ou entidade. Desta maneira, seu sucesso como sua falha ao final do processo não são atribuídos meramente à reputação, posição ou influência do indivíduo ou instituição que as propôs. Ao contrário, pertencem ao grupo que as adota, revisa, ou descarta, conforme a necessidade da comunidade.

Uma discussão aberta e franca frequentemente produz diferentes pontos de vista, especialmente devido à diversidade cultural, histórica e das experiências representadas no cenário internacional. Quando abordada de maneira construtiva, essa diversidade de perspectivas pode revelar premissas inéditas e favorecer o surgimento de novos conceitos e ideias. Nesse contexto, os participantes têm a possibilidade de explorar os diversos pontos de vista de modo a promover níveis mais elevados de harmonia e cultivar a unidade de pensamento e ação dentro do grupo.

Conforme a descrição apresentada acima, a consulta consiste em uma abordagem deliberativa que unifica em vez de dividir. Seu objetivo abrange não apenas a avaliação da realidade de uma situação específica, mas também o fortalecimento dos laços que unem os participantes. No âmbito internacional, tal abordagem pode auxiliar os estados a trabalhar em conjunto para o bem comum de maneira mais efetiva, assim como a identificar e solucionar as debilidades do sistema multilateral que restringem o progresso.

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Vemos a Rio +20 como sendo o próximo passo no processo de aprendizado dos povos do mundo em busca de soluções coletivas. Os laços de afeição, confiança e cuidado mútuo que unem os indivíduos estão em contínua expansão, abrangendo uma porção cada vez maior da sociedade humana. O novo ‘nós’ não é uma abstração. É a conscientização de que devemos persistentemente desafiar a nós próprios, às nossas comunidades e instituições sociais para reavaliar e refinar os padrões estabelecidos de pensamento e interação a fim de que possamos definir de maneira mais adequada o curso do desenvolvimento humano em todo o mundo.



[1]           Nos últimos 40 anos, a comunidade internacional articulou vários princípios éticos necessários para atingir objetivos e guiar a implementação de ações na área do desenvolvimento sustentável. Entre eles, incluem-se os princípios contidos na Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992) e aqueles constantes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (1992).